Literatura em Capítulos: Vidas Amigas


“O maior esforço da amizade não está em mostrar nossos defeitos a um amigo, mas em fazer-lhe ver os seus.” Le Rochefoucauld

No amanhecer de mais um dia, as coisas pareciam não ter mudado nada. Os perfumes das flores orvalhadas rivalizavam com o cheirinho irresistível que vinda da padaria. Aquele pão feito na hora era uma das melhores coisas de Belmonte, mas não a única. Seu Paulo era um confeiteiro de mãos cheias. Fazia guloseimas como ninguém. Sua mercearia era famosa na região. O bolo floresta negra que ele fazia acabava assim que chegava ao balcão. Todo mundo adorava.
Os primeiros raios da manhã também traziam encantos à pracinha da cidade. Era o ponto de encontro da juventude, e o lugar preferido dos mais vividos. Enfim, aquele era um canto especial para todos. Era naquela pracinha que as pessoas se encontravam, se conheciam, e começavam a se gostar. Tudo daquele jeito típico do interior, num ritmo próprio, sem brigar com o tempo. Em Belmonte a vida era mais que uma sucessão de horas. Viver era uma sucessão de prazeres, que jamais devem ter a mesma medida do tempo, pois são sentimentos que ficam nas nossas memórias por muito tempo.
Ali na pracinha, sentado, Diego observava a vida passar. Era tudo muito diferente para aquele garoto que vivera dezessete anos na cidade grande, e, de repente, estava em um lugar “parado”, tendo em vista a velocidade com a qual ele estava acostumado a viver. E foi na pracinha que Diego viu Ana Maria passando, indo para a igreja, com sua mãe, a Dona Letícia. Ana Maria regulava a idade com a dele, e, apesar da regra dura de sua mãe, tinha sonhos próprios de uma garota da sua idade. Naquela pracinha, seu coração bateu mais forte, quando seus olhos se cruzaram com os de Diego.
O rapaz também não ficou indiferente. Por alguns segundos, os olhares dos dois se cruzaram, e não mais queriam se deixar. Diego ficou encantado com aquela menina bonita, de olhos negros, e pele rosada. Como ela vivia da igreja pra casa, com exceção de quando ia para a escola, não tinha a pele queimada pelo sol. E ele era um garoto muito bonito também. Louro de olhos claros, uma altura muito boa, e um jeito próprio dos jovens da capital. Isso encantou Ana Maria. Mas tudo durou uns segundos, que pareciam eternos, é verdade, pois Dona Letícia logo puxou Ana Maria pelo braço, para entrarem logo na igreja, porque era preciso rezar logo o terço.
Diego resolveu sair dali. Era melhor sonhar em casa. E foi o que ele fez. Também, observar as pessoas no banco daquela praça já estava monótono para o rapaz. Era melhor mesmo sair logo dali e ir agitar mais as coisas. Mas onde? Como acabar com aquele marasmo? Para Diego, agora, a solução era sonhar com aquela menina que ele conheceu, e que nunca viu igual. Logo ele, que sempre achou muito difícil se apaixonar, parecia estar flechado pelo cupido. Irremediavelmente.
Quem não estava nada feliz era Helena. Dos quatro amigos, ela era a mais enfurecida pela ideia de se construir uma fábrica de móveis nas imediações de Belmonte. Augusto também compartilhava desta raiva, mas ele era mais calmo que ela. De fato, o impacto ambiental seria enorme, embora a chegada da fábrica representasse geração de emprego para o lugar. Mas nem esse atenuante fazia com que Helena se acalmasse. Ela não aceitava que uma boa biodiversidade pudesse ter fim para que empregos fossem gerados.
- É um absurdo!
- Também acho, mas não sei se o povo vai pensar assim. Eles precisam de empregos, Helena. Isso não há como negar.
- Augusto, existem vários modos de se gerar emprego em um lugar como Belmonte. Temos cachoeiras, uma mata que serve pra trilhas, respeitando os animais que vivem nela...
- Turismo! Brilhante! E quem vai visitar uma cidade que só tem o hotelzinho do Seu Otto? Entenda, eu não concordo com a fábrica, mas...
- E por que, ao invés de construir uma fábrica, o prefeito não atrai um grupo hoteleiro?
- É... Você tem razão!

Helena é estudante de biologia. Ela não podia aceitar o desmatamento. Muito mais que ser uma ecochata, como o prefeito a estava apelidando, Helena tinha noção do prejuízo que este desmatamento em nome de empregos faria ao lugar. Belmonte nunca mais seria a mesma, se essa fábrica realmente se concretizasse. E não porque a cidade iria crescer, mas Helena entendia que a perda da mata que envolve a cidade poderia gerar transtornos de clima, e a perda de mananciais de água, o que seria muito ruim. Ela tinha razão para estar preocupada.
- Já sei. Eu vou falar com esse Hugo Pontes. Vamos ver o que ele tem a me dizer.
- Lá vamos nós pra uma enrascada.
- Se quiser, você pode ficar aí, Augusto.
- Nada disso. Eu posso até não concordar com você, mas não deixo um amigo na mão de jeito nenhum. Se você vai à casa do lobo, eu vou junto.
- Eu já te disse que você é um bom amigo hoje?
- Você sempre diz isso pra todos!
- Não seja chato, Augusto.

E lá se foram os dois até a casa do senhor Hugo Pontes, o industrial que pensa em construir uma fábrica de móveis em Belmonte. Conversar é sempre a melhor maneira de se resolver qualquer assunto, e deve ser pensada sempre em primeiro lugar. Isso Helena aprendera com sua pai, o Sr. Almeida. Então, por mais ódio que ela já tivesse de Hugo Pontes por ele cogitar desmatar em Belmonte, a jovem preferia primeiro conversar com ele, até para saber melhor de suas intenções.
Mas Carol não estava com eles. Nem Rodrigo. Ela preferiu ficar em casa naquele dia. Queria pensar em algum modo de ajudar o amigo. Rodrigo estava triste, e aquilo não era passageiro. E Carol também não achava que se devia pensar como Helena, que não via motivos para seu amigo estar triste, pois o próprio Rodrigo sempre gostou de currais, e sempre preferiu viver naquele ambiente. Para Helena, se ele estava querendo ficar só, devia ter sua vontade respeitada, pois todo mundo precisa de um momento sozinho, para poder colocar suas ideias no lugar. Talvez Rodrigo só precisasse disso. Um momento sozinho.
Carol, como tinha visto o amigo, não conseguia pensar dessa forma. Ela sentia que Rodrigo precisava de ajuda, mas não sabia como pedir, e nem conseguia enxergar, na verdade, que precisava dessa ajuda. Quem precisava de seu momento, sozinha, era ela, mas não porque quisesse colocar as ideias no lugar, mas porque queria entender como ajudar Rodrigo, um amigo muito querido. Ela estava decidia a melhorar o humor dele, e precisava pensar direito em como fazer isso. A tarefa, pelo jeito, não seria nada fácil. Então, era preciso pensar.
Ao chegar à casa de Hugo Pontes, Helena e Augusto tomaram um susto com a surpresa que lá estava. Era o Prefeito Zé Carlos, que tinha sido convidado para tomar um café-da-manhã com o industrial. “Tanto melhor”, disse Helena. Certamente, seriam dois coelhos matados numa cajadada só. É verdade. Assim, ela não teria que repetir ao Prefeito o que tinha a falar ao Hugo Pontes, pois, como os dois estavam de conluio na implantação deste projeto, não fazia sentido despejar toda raiva apenas no homem que construiria a fábrica. Quem pensou em trazê-la também merecia ouvir umas boas.
No caminho, Augusto pediu a Helena que ele falasse, pois ela era muito aguerrida nas palavras, e, além do mais, estava nervosa. A preocupação dele era a de que, tendo sua amiga um pavio curto, agredir com palavras uma pessoa importante como o Hugo Pontes era questão de minutos. Helena até consentiu ficar quieta no inicio, mas já disse logo que não iria ficar calada caso ele começasse a provocar. Ela estava com muita raiva dessa ideia toda de ter a mata da sua cidade, lugar de vida, devastado para dar lugar à uma fábrica de móveis.
Então, chegando à casa de Hugo Pontes, estavam frente à frente dois jovens defensores da natureza, e dois homens que pensavam no progresso humano, mas sem medir o impacto que isso teria para a pacata vida da cidade.
- Mas que bom ver o Prefeito aqui também!
- Helena, você falou que ficaria quieta, pelo menos no inicio – Sussurrou Augusto.
- Não dá, Augusto. Eu mal cheguei e ele já está me provocando.
- Então são vocês os grandes defensores da mata de Belmonte?
- Pois é. Somos nós! E então são vocês os grandes destruidores.
- Calma aí, mocinha. Eu estou trazendo progresso, empregos...
- Concordo, Senhor Hugo. Só não concordo com o meio usado pra isso.
- Helena, o Senhor Hugo Pontes é um visionário.
- É, enxerga longe, tanto quanto o prefeito ma-ra-vi-lho-so que temos.
- Você tem raiva de mim porque venci seu pai nas eleições.
- Não, senhor. Eu tenho raiva de você porque faz uma administração desastrada e imbecil, olhando só para o próprio umbigo, e não medindo o preço do seu populismo.
- Helena, ele é o prefeito, esqueceu? – Augusto sussurrou novamente.
- Um prefeito que nem se importa com a qualidade de vida dos seus governados não é um prefeito, mas um destruidor em massa.
- Eu não vou ficar ouvindo essa garotinha mimada. Tenho que ir.
- Não, eu só vim dar um recado, porque é impossível conversar com você. Na mata ninguém toca. Não ousem enfrentar o povo.
- Isso é o que nós vamos ver. Quero só ver se seu discurso vence com o povo depois que eles ficarem sabendo que vão ter emprego, dinheiro pra gastar.
- O recado tá dado, ok?!
- Boa sorte, garotinha!

É... O tempo esquentou entre o prefeito Zé Carlos e Helena. Tanto que nem Augusto, nem Hugo pontes tiveram vez nesse embate. Virou uma coisa pessoal. É verdade que Helena não gostava muito do prefeito por ele ter vencido seu pai nas ultimas eleições. Mas é verdade também que, como administrador, ele é um desastre. Ele é autor de medidas muito contestáveis, e na loucura de manter os votos que conquistou no ultimo pleito, inventou a vinda desta fábrica, com a promessa de muitos empregos para a população.
- Isso não vai ficar assim!
- Ah é, justiceira?
- Não to brincando. Vamos fazer um movimento nessa cidade.
- Lá vem você com suas ideias, Helena.
- Você vai ver.

Bem, amigos! Chego aqui ao 100º post deste blog. Agradeço sempre ao grande incentivador deste espaço, meu amigo sem igual Cláudio Rízzih, um artista com alma de artista, que não só faz pela arte, mas transpira a arte, e procura vivenciar a todo momento aquilo que ele está representando. Artista e personagem se confundem nele. Gente assim me inspira. E Agradeço imensamente todos que vêm me visitar aqui, sempre prestigiando as minhas ficções, algumas vezes até as julgando reais. Se eu estou conseguindo passar a mensagem com tanta veracidade, fico feliz. Muito obrigado a todos! Vocês é que me fazem querer sempre ser melhor, a cada novo texto que publico aqui.

2 comentários:

  1. Primeiro parabéns pelo 100º post!
    Segundo, eu acho que a Dona Letícia deve morrer. Estuprada. Odeio esse tipo de igreja, vaca velha maldita, que transforma a vida dos filhos em estradas de mão única, quase sem escolhas.
    A mensagem ecológica da história acompanha o que caracterizam como rebeldia, quando alguém tem a CORAGEM de bater de frente com quem procura crescer sem se preocupar com o resto. Helena é mara. E, só pra destacar, quero colar aqui a parte do texto que encheu meus olhos de água:

    "Em Belmonte a vida era mais que uma sucessão de horas. Viver era uma sucessão de prazeres, que jamais devem ter a mesma medida do tempo, pois são sentimentos que ficam nas nossas memórias por muito tempo."

    LINDO. Parabéns de novo, Léo.

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  2. Queria mais de Diego e Ana Maria. :(

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