Livro em Cena: "A Mestra e o Monstro"

Olá, pessoal! O “livro em cena” deste mês é muito especial para mim. Trata-se de um romance fora de catálogo, de 1988, e que meu avô possui um exemplar, ganhado das mãos do autor. A Mestra e o Monstro, de Belchior Neto, é uma daquelas histórias que ficamos tristes quando chegamos ao fim da leitura. É aquela velha idéia do autor que sabe como colocar os sentimentos nas páginas de um livro, e consegue transformar até prosa em poesia.
Esta é uma daquelas histórias típicas do interior de Minas. Belchior Neto é um interiorano. Religioso, escreveu algumas obras com aquele ar de pureza que qualquer um consegue notar quando faz uma incursão pelas cidadezinhas de Minas Gerais, onde há sempre uma igrejinha, com uma praça à frente, alguns bancos, e umas casinhas de mil setecentos e alguma coisa. As pessoas podem não ser inocentes, mas no interior não têm a malícia dos homens da cidade grande.
Na cena, Maria Laura, uma jovem professora, e sua mãe, Dona Isaura, e seu pai, o fazendeiro Coronel Jacinto, travam um diálogo cativante com um garoto de rua que perambulava por Lucerna. Nesta cena não há nada de monstros.
Boa leitura!

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CENA: CASA DE MARIA LAURA / INTERIOR-EXTERIOR / MANHÃ

Maria Laura está lendo na mesa da cozinha.
Dona Isaura Prepara o almoço.
A campainha toca.

Maria Laura: Eu atendo!

Ao abrir a porta, ela vê Lúcio com a mão estendida, ar de tristeza.

Lucio: Ô Dona, me dá um dinheiro pra comprar um pão.
Maria Laura: Você não tomou café hoje?
Lucio: Não sinhora!
Maria Laura: Como você se chama?
Lucio: Lucio.
Maria Laura: Pois é, Lucio. Dinheiro agora não tenho. Se você quiser tomar café com pão, eu lhe dou.
Lúcio: Quero sim, sinhora!

Maria Laura o leva para a cozinha.
Ao receber o café com pão, Lucio come como se tivesse muito tempo que não comesse nada.
Maria Laura fica assustada com a voracidade do menino.

Maria Laura: Lucio.
Lucio: Sinhora!
Maria Laura: Escute: Lucio de quê? Qual seu nome todo?
Lucio: Uai... Lucio de nada.
Maria Laura: Que isso!... Como se chama seu pai?
Lucio: Eu não tenho pai.
Maria Laura: E sua mãe? Como se chama?
Lucio: Mãe? Eu não tenho mãe, também não!
Maria Laura: Ora, Lucio... Não é possível.

Lucio termina de comer o pão e tomar o café, e limpa a boca com as costas da mão.
Dona Isaura observa Lucio.
Lucio começa a explicar, na maior simplicidade, sua vida.

Lucio: Vou contá pra sinhora... Eu nem conheci meu pai. Minha mãe me batia muito, e um dia ela fugiu com um homem pra Goiás. Mas antes, pegou umas roupas que eu tinha... Me amarrou elas na cacunda, e disse assim: Vai embora, Lucio. Vai caçar o que fazer. Some!
Dona Isaura: Nossa!
Lucio: É... Ela foi embora com o nome dela... E eu fiquei zanzando por aí. Meu padrim me levou pra casa dele. Depois, ele morreu. E a mulher dele num me quis mais. E eu to aí, que nem cachorro sem dono...
Dona Isaura: Lucio, onde você está dormindo?
Lucio: Eu? Uai... Uma noite debaixo da ponte... Hoje, de ontem pra hoje de manhã, eu dormi na porta da igreja... Tava fazendo um frio!...
Dona Isaura: Lucio, você já é homem. Você deve ter uns nove anos, não?
Lucio: Já fiz dez anos!
Dona Isaura: Você não quer ganhar dinheiro... Uma roupinha melhor?
Lucio: Querer eu quero, uai...
Dona Isaura: Mas, o melhor é você ganhar com o seu trabalho... O que você faz?
Lucio: Uai... A sinhora me dá uma enxadinha... Que eu sei capinar. Ah, capinar eu sei!

Dona Isaura olha com ternura para Lucio.
Ela não diz nada. Só olha pra ele, pensando se deve deixá-lo capinar o quintal.
Lucio olha para o quintal e vê uma enxadinha no canto.

Lucio: Ali uma enxadinha! A sinhora quer ver eu capinar? Tira ela pra mim.

Dona Isaura não está certa se deve.
Maria Laura se adianta e pega a enxadinha para Lúcio.

[cena externa – quintal da casa de Maria Laura]

Lúcio vai até Maria Laura, com os olhos brilhando.
Ele está feliz por Maria Laura confiar nele.
Lucio pega a enxadinha, e passa o dedo na lâmina, com toda segurança de quem sabe o que faz.

Lucio: Essa é boa!

Lucio começa a capinar um pedaço perto da casa.
O Coronel Jacinto aparece na janela, e fica olhando Lucio capinar.
Da janela, o Coronel começa a conversar com Lucio.

Jacinto: Eu tenho um bom trabalho pra você. Não quer trabalhar na minha fazenda?
Lúcio: Oba!
Jacinto: Ora... Tenho e muito. Lá, você pode não só capinar, mas pode tirar leite, pode andar a cavalo...
Lucio: Uai... Então!
Jacinto: Então agora você vai almoçar, depois vai dormir, porque seus olhos estão me mostrando que você precisa disso... E depois, vamos ver.

Maria Laura olha para o pai, sorrindo, feliz.

[cena interna – cozinha da casa de Maria Laura]

Dona Isaura prepara o almoço de Lucio.
Depois de colocar o prato para ele, todos se servem e sentam-se à mesa.

Maria Laura: Lucio, você se lembra o nome completo dos seus pais?
Lucio: Não sinhora!
Maria Laura: E de algum parente? Tio... Avô... Avó...
Lucio: Não sinhora!
Dona Isaura: Bom, padrinho é um segundo pai, como diz nosso vigário. Você não se lembra, Lucio, como se chama seu padrinho, que te acolheu em casa?
Lucio: Quem? O Padrim Zé?
Dona Isaura: Isso mesmo. Qual o nome todo do seu padrinho Zé?
Lucio: Padrim Zé das Dor...
Maria Laura: Padrim Zé das Dor de quê?
Lucio: Padrim Zé das Dor... Deixe eu pensar...

Lucio leva a mão à testa, pensativo.

Lucio: Já sei! Padrim Zé das Dor Gonçarve!... (mais firme) GONÇARVE!
Jacinto: Ótimo! Agora descobri seu nome todo, Lucio!
Lucio: Meu nome? É...? Então eu num sou mais Lucio de nada?
Jacinto: Não. De agora em diante, seu nome será muito mais bonito.
Lucio: Então como é?
Jacinto: Seu nome agora é Lucio Das Dores Gonçalves!
Lucio: Ih!... Quase que dá o nome do Padrim Zé.
Jacinto: Não fica mais bonito?
Lucio: Então, eu num sou mais Lucio de nada, não?
Jacinto: Não. Agora você é Lucio de tudo... Você tem o nome mais bonito do mundo. Seu nome é Lucio das Dores Gonçalves.
Lucio (sorrindo): Lúcio das Dor Gonçarve!... Gostei!
Dona Isaura: Então, senhor Lucio das Dores Gonçalves, agora vou te levar pra cama, porque você precisa dormir.
Lucio: Sério que cês num tão brincando comigo?
Dona Isaura (sorrindo): E eu tenho cara de quem está brincando?
Lucio: Então ta!

Dona Isaura leva Lucio para um banho.
Ele sai da mesa feliz, sorrindo.
Maria Laura o observa.
Depois que ele sai, Maria Laura resolve interpelar seu pai.

Maria Laura: Papai, ele só tem 10 anos. Não pode trabalhar.
Jacinto: E quem falou que ele vai trabalhar?
Maria Laura: O senhor, lá na janela do seu quarto.
Jacinto: Minha filha. Deixe ele brincar de ser trabalhador na fazenda. Ele vai aprendendo alguma coisa, mas vai é brincar. Eu não vou exigir trabalho dele, claro. Esse menino só precisa se sentir amado. E você o ensinará as coisas lá na sua escolinha.
Maria Laura (muito feliz): Obrigada, papai. Hoje fizemos uma boa ação.
Jacinto: É, eu sei!

Maria Laura dá um beijo no rosto do Coronel Jacinto e sai para seu quarto.
O Coronel Jacinto fica, pensativo, à mesa.

Jacinto: É, eu fiz uma boa ação hoje.

2 comentários:

  1. Esse parece ser um daqueles livros em que você começa a ler, e não termina até que se chegue a última página.
    Uma história rica em detalhes, com essência. Simplesmente ADOREI!

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  2. Bonitinho pra uma cena, entediante pra um livro. Sério. Meu gosto é do tipo: livro com adolescentes loucos, fofocas, MUITO DRAMA e muita dor. Achei fofo, mas só pra cena mesmo.

    "Lucio: É... Ela foi embora com o nome dela..."

    Isso foi genial.

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