Livro em Cena: "Tchick"

Escrever para adolescentes e jovens não é algo tão fora de moda assim. Eu já mostrei aqui um exemplo brasileiro de bastante qualidade, quando trouxe os dois livros da Série “Lado B”, do escritor carioca Enrique Coimbra. E quando falamos de uma sociedade mais ávida por leitura que a brasileira - como na Europa -, isso é muito mais aguçado.
Este mês o Literatura Exposta traz Wolfgang Herrndorf, escritor alemão que fez de seu “Tchick” uma deliciosa aventura, capaz de levar ao leitor do riso à comoção a cada nova página. Certamente uma ótima viagem mental. O livro é distribuído no Brasil pela Editora Tordesilhas e verdadeiramente compensa cada centavo usado em sua compra.
Boa leitura!

CENA: SALA DE TCHICK / INTERNA / NOITE
A cena começa com a câmera totalmente focada no computador de Horst, em um jogo de luta parecido com o Counter-Strike. Os dois estão falando sobre o jogo. O personagem de Horst está com o personagem de Tchick na mira, e o segue, enquanto Tchick não consegue o ver. Então, Horst atira, certeiro, nas costas de Tchick, que cai no chão.

Tchick: Merda! (Pausa) Onde você está o tempo todo? Eu não consigo mais te ver.

Horst troca de arma no jogo, e vai conferir se o personagem de Tchick está morto e, ao constatar isso, comemora.

Horst:
Tudo bem, tudo bem. É. Fica frio. Puxa.

Tchick reinicia o jogo, levanta-se e vai buscar uma cerveja.

Tchick:
E se a gente se mandar?
Horst: O quê?
Tchick: Tirar umas férias. Afinal, não temos nada pra fazer. Vamos tirar férias como gente normal.
Horst: Do que você está falando?
Tchick: Pegar o Lada e... Tchau.
Horst: Isso não é exatamente o que gente normal faz.
Tchick: Mas a gente podia, né?
Horst (Sentenciando): Negativo. Aperte o start.
Tchick (iniciando o jogo): Por que não?
Horst: Negativo.

Eles voltam a jogar, concentrados.

Tchick (perdendo):
Cara, se eu te pegar...

Ele está metralhando todo mundo e tudo o que vê pela frente no jogo, mas não Horst.

Tchick:
Digamos, se eu te pegar em cinco jogadas. Ou em dez jogadas. Em dez.
Horst: Você não me pega nem em cem.
Tchick: Em dez.

Horst deixa Tchick o vencer, e Tchick o estraçalha com uma faca.

Tchick:
Oba! Não disse que te pegava?
Horst (mudando de assunto): Sério. Vamos fazer de conta que a gente fecha o combinado.

Tchick desliga a tela do seu computador e vai até a Geladeira. Pega mais uma cerveja e joga para Horst.

Horst:
E se nos delatarem?
Tchick: Eles não vão nos delatar, cara. Além disso, se quisessem, já teriam feito isso faz tempo e a polícia já estaria aqui. Não sabem nem que o Lada é roubado. Eles nos viram no máximo por dez segundos. Certamente estão pensando que o carro é do meu irmão ou algo assim.
Horst: E para onde você quer ir?
Tchick: Tanto faz.
Horst: Se a gente vai se mandar, então não seria nada mal saber para onde.
Tchick: Podemos visitar meus parentes. Tenho um avô na Valáquia.
Horst: E onde ele mora?
Tchick: Como assim onde ele mora? Na Valáquia.
Horst: É perto daqui?
Tchick: O quê?
Horst: Em algum lugar fora da cidade?
Tchick: Não é em algum lugar, cara. Na Valáquia.
Horst: Mas é a mesma coisa.
Tchick: O que é a mesma coisa?
Horst: Algum lugar fora da cidade e na Valáquia são a mesma coisa.
Tchick: Não to entendendo.
Horst: É só uma palavra, cara. (bebe a cerveja) Valáquia é só uma palavra! Assim como Seiláondenópolis. Ou Pequepê.
Tchick: Minha família é de lá, tá.
Horst (rindo): Achei que você vinha da Rússia.
Tchick: Sim, mas uma parte também é da Valáquia. Meu avô. E minha tia-avó e meu bisavô e... O que tem de tão engraçado nisso?
Horst: É que fica parecendo que seu avô mora na Pequepê. Ou em Seilaondenópolis.
Tchick: E o que tem de tão engraçado nisso?
Horst: Pequepê não existe, cara! Pequepê quer dizer na Putaqueopariu, bem, bem longe. E a Valáquia também não existe. Se você diz que alguém mora na Valáquia, quer dizer que mora é nos pampas.
Tchick: E os pampas também não existem?
Horst: Não.
Tchick: Mas meu avô mora lá.
Horst: Nos pampas?
Tchick (sem paciência): Você enche. Sério. Meu avô mora no cú do mundo, num país que se chama Valáquia, e amanhã nós vamos pra lá.
Horst (sério): Conheço 150 países no mundo, inclusive as capitais. (ele bebe mais cerveja) Não existe Valáquia.
Tchick: Meu avô é legal. Ele tem dois cigarros na orelha. E só um dente. Eu estive lá quando tinha uns cinco.
Horst: O que você é, afinal? Russo? Valaquiano? O quê?
Tchick: Alemão. E tenho passaporte.
Horst: Mas de onde você vem?
Tchick: De Rostow. Fica na Rússia. Mas a família é de todo lugar. Alemães do Volga. Alemães étnicos. E suábios do Banato, Valaquianos, ciganos judeus...
Horst (surpreso): O quê?
Tchick: O que o quê?
Horst: Ciganos judeus?
Tchick: É, cara. E suábios, e valaquianos...
Horst: Não existe.
Tchick (sem paciência): O que não existe agora?
Horst: Ciganos judeus. Você está falando merda, cara. Você está o tempo todo falando merda.
Tchick: Nada disso.
Horst: Ciganos judeus é como franceses ingleses! Não existe.
Tchick: Claro que não existem franceses ingleses. Mas há judeus franceses. E também há ciganos judeus.
Horst: Judeus ciganos.
Tchick: Exatamente. Eles têm um treco daqueles na cabeça, ficam andando pela Rússia e vendem tapetes. Você sabe, aqueles com o treco na cabeça. Quipá. Quipá na cabeça.
Horst: Quipa na bunda. Não acredito em nenhuma palavra.
Tchick: Você não conhece aquele filme com o Georges Aznavour?
Horst: Filme é filme. Na vida real você só pode ser cigano ou judeu.
Tchick: Mas cigano não é religião, cara. Judeu é religião. Cigano é alguém sem casa.
Horst: Os sem-casa são, por acaso, os berberes.
Tchick: Os berberes são tapetes.

Horst fica pensativo, com toda a cerveja fazendo efeito na cabeça. Então ele pergunta a Tchick:

Horst: Você é um cigano judeu? Realmente?

Tchick acena positivamente com a cabeça.

Horst: Cara, vamos dormir. Essa cerveja e toda essa conversa já me deram um nó na cabeça.
Tchick: Vamos sim. Amanhã... Valáquia.
Horst: Eu ainda não acredito que exista um lugar com esse nome, mas tudo bem.
Tchick: Vou só terminar de tomar essa cerveja. Desperdiçar é que não posso.

Horst se levanta e vai saindo pro quarto. A cena fecha no rosto de Tchick.
Tchick: Amanhã, a Valáquia.
FIM

4 comentários:

  1. Cara, não conhecia esse autor! Obrigado por me apresentar, de forma tão divertida e interessante (por causa da composição cinematográfica, claro) um cara que eu vou procurar durante as férias pra ler. A cena é bem divertida, bem jovem, curti bastante.

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  2. Rá!

    Estou quase terminando o livro, Leonardo. Para ser sincero, estou achando apenas divertido.É um livro "legal". Não dá pra dizer outra coisa.

    Meus livros prediletos narrados por personagens adolescentes continuam sendo: "Fôlego", do australiano Tim Winton; "Menino de Lugar Nenhum" do inglês David Mitchell; "A História Secreta", Donna Tartt; e o vencedor do pullitzer, "A fantástica Vida Breve de Oscar Wao", de Junot Díaz.

    Um abraço, do seu amigo tucano, viciado em literatura.

    Sérgio Benatti (@s_benatti)

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  3. Ufa, finalmente consegui um tempinho pra ler. E fiquei chateado... POR NÃO TER LIDO ANTES!
    Muito dinâmico esse diálogo, fui imaginando tudo aqui, flui muito fácil e o teor é ótimo.
    Quer dizer que Valáquia é perto de Onde O Vento Faz a Curva, entre o Lugar Que Judas Perdeu as Botas e a Casa do Chapéu? Muito legal, Léo!
    Gostei, pra variar...

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