Oi! Eu sou o Matias. Com certeza você não me conhece. Claro, eu nunca
disse nada aqui. Então, muito prazer te conhecer. Eu sou um andarilho. Faço
isso por vontade mesmo. Aliás, eu não gosto desse termo. Prefiro
"colecionador de histórias". Isso!É o que faço melhor. Pelos lugares
que eu ando, vejo pessoas e seus modos estranhos de agir. Não me espanto, e
também não vi de tudo. Pelo menos não ainda. Faz parte da vida de um
colecionador como eu nunca estar satisfeito com a coleção que possui.
Mas acho que esse blablablá todo sobre mim não é o que interessa a
você. E o que vim fazer aqui é contar essas histórias que acumulei nas minhas
andanças. Isso sim deverá despertar em você algum envolvimento comigo. E eu
imagino que a curiosidade esteja corroendo você aí por dentro já, querendo
saber que raios eu tenho a dizer, e se vale a pena gastar seu tempo aqui comigo
e com minhas histórias. Então, bom, vamos lá!
Estava eu indo por uma cidade dessas pequenas do interior do Brasil,
daqueles interiores mesmo, bravos, cheios de tempo parado e gente travada. Era
uma sexta-feira da paixão, como essa última que vivemos. Havia no lugar uma
praça simpática, com uma igreja, alguns ornamentos, um coreto... Tudo típico e
normal de interior. Na frente dessa igrejinha, tinha uma cruz erguida com um
desses bonecos articulados que denotam Jesus morto, com há milênios. Sempre se
repete a mesma história, acho, porque os homens observam mas não absorvem a
profundidade desse ato. Na realidade, o que eu via ali é gente buscando ser melhor que gente o tempo inteiro. Esse papo de "somos todos iguais", pff, não valeu mesmo naquele momento e naquele local. Enfim...
Pela noite, em qualquer lugar nesse dia, os católicos do lugar (sim,
porque existem não-católicos em todos os lugares) foram para a frente da
igrejinha assistir o sermão do padre, reserva moral do lugar, pessoa, pelo que
fiquei sabendo, que tem ares de modernidade, mas segue levando o rebanho no
cabresto como todo e qualquer religioso de todo e qualquer lugar no mundo. Não
tem diferença nessas coisas. A igreja é como aquelas redes grandes de Fast
Food. Tudo tem uma regra norteadora, um princípio que deve ser seguido à risca
por todos os clérigos, estejam eles no Brasil, na Índia ou no Japão. Tudo como
Roma determinar. E aquele Padre, que tem um chefe chamado bispo, não podia
fugir à regra.
Enquanto fazia seu sermão, o padre colocava nas costas daquele boneco
cristico na cruz a culpa de todos, mas sempre aliviando o pobre e sofrido povo,
e carregando a mão nas acusações aos que governam essa população toda. Eu
fiquei de longe, né, ouvindo o Padre, mas no meio do povo, que dizia sempre nos
comentários do padre: "É verdade. Essas pessoas escolhem só porcaria para
estar lá. O povo não sabe votar. Essa gente só escolhe mal. Por isso estamos
nessa merda toda".
E quanto mais o padre, no seu púlpito, deitava falação contra
políticos - o que está na moda, por sinal - mais as pessoas cochichavam,
desrespeitando o morto lá na cruz que merecia silêncio, e, se você percebeu
como eu, colocando a culpa sempre no outro. É como se elas tivessem feito a
parte delas, mas, infelizmente, a maioria não as seguiu. Nunca ninguém se coloca
como parte do problema, e, portanto, da busca pela solução. O outro é sempre o
que provocou o erro, que fez o feio, que andou mal, que deu má nota! Eu sou
perfeito. O outro fez bobagem e estamos pagando todos por isso.
E, nesse mesmo pensar, ali, diante do cristo morto descido da cruz, as
pessoas acorriam às barraquinhas espalhadas pela praça, que vendiam toda sorte
de gulosices que não deviam ser consumidas pelo povo que se diz seguidor dos
ensinamentos da igreja que os fazia estar ali naquele momento. Vendeu-se carne
à vontade. Frituras de toda sorte. Até onde esse colecionador que lhe fala
sabe, a sexta-feira da paixão é um dia de abstinência, e a procissão do enterro
de Cristo é um momento de silêncio e busca pela paz, na expiação dos próprios
pecados.
Mas o errado, poxa, é o outro. Por isso que Jesus morreu. "Povo
incompreensível, gente". "Foram capazes de mandar soltar um matador
conhecido pra matar um homem que nunca fez mal a ninguém e pregou só o amor por
onde passou". "Tadinho dele". E entre comes e bebes, todos se
compadecem da dor sentida pelo representado lá nos milênios anteriores que
conhecemos tão bem. É engraçado notar como essas coisas se processam. Não é só
a doninha que fofoca com a vizinha pela janela. É todo mundo. E os mais velhos
ensinam isso aos mais novos. Respeitar o momento virou não se curvar. Reagir
virou justificar-se no erro alheio. Mas todo mundo tá feliz. Isso importa
bastante. Não dá para ser triste e zangado sempre.
Aí, não é difícil prever o futuro daquele lugar. Seguirá tendo um
padre que obedece a um bispo que obedece a um cardeal-papa. Continuará
assistindo a paixão do Cristo naquele mesmo bat-lugar, e no mesmo bat-horário.
E persistirá acusando os outros pelos erros que cada um permanece cometendo
nessa infinita roda da vida que não cessa de seguir criando humanos que passam
pela vida e não vivem, que tem sua chance e não brilham, que possuem a
oportunidade de fazer melhor e não fazem, e que podem parar de culpar os outros
pelos próprios erros, mas não farão.
Fui embora daquela cidade com um sentimento de pesar por aquela gente.
Cheguei a outra, próxima dali, e não foi diferente. Nem na seguinte, nem na
seguinte... Situação arraigada. Criticam quem os rege, mas não sabem sequer o
que é reger. Falam mal ao vivo e buscam o jeitinho nas escuras, para ninguém
ver. É sempre assim.
Eu? Ah, eu segui andando. E, olha, devo ter feito igual a eles lá
naquela cidade, viu. Eu sou humano também. Não um ET. E acho que já falei muito
da vida dos outros. Já agi bastante com meus conceitos mal formados das coisas
e das pessoas. Eu também erro igualzinho àqueles moradores. E eu também sigo
feliz, porque não dá pra ser só triste e zangado sempre, não é mesmo?
Leonardo Távora
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