O livro e o leitor

Estava ele abandonado
Em meio a tantos outros
Como ele esquecidos
Até sentir um toque
E abrir-se
Como o mar para Moisés
Sentiu-se espionado
Vasculhado, escrutinado
E gostou
Permitiu-se a dar prazer
A um desconhecido
Foi virado e revirado
Usado, manipulado
Servido à meia luz
Com café, água ou vinho
Sentiu-se amado
Por aqueles olhos ávidos
Que o devoravam por boas horas
E de tanto revelar-se
Certo dia não tinha mais o que mostrar
Fecharam-lhe
Colocaram-no numa estante
Em meio a tantos outros
Todos usados, como ele
Sentiu-se traído
Trocado por outro
Esquecido de novo
E assim o foi por anos e anos
Tomado por poeira e solidão
Amarelo de velho
Cansou, até desistiu
Pensou em jogar-se da estante
Todavia, não tinha pernas
Nem coragem
Mas, num dia frio
Para sua alegria
Foi tocado novamente
Por mãos pequeninas
Porém parecidas com as mãos
Que outrora lhe deram razão
Tentaram abrir-lhe
Resistiu o quanto pode
Afinal, sabia no que ia dar
Que seria bom enquanto durasse
Concluiu, enfim, que mesmo tendo um fim
Seria bom do mesmo jeito
E abriu-se, permitiu-se de novo
Descobriu um novo par de olhos
Também parecidos com aqueles
Que antes o devoravam
Estava fadado ao eterno círculo vicioso
Do amor ao abandono
E deixou-se amar de novo
Até o fim

Celso Garcia

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