Livro em Cena: "Casa Velha"

Chegamos ao final do ano com uma obra que merece todo respeito dos amantes da Literatura. Trata-se de um dos últimos romances escritos pelo mestre Machado de Assis, pai de histórias formidáveis, que ainda mexem com o imaginário popular no Brasil, mesmo depois de tantos anos. Casa Velha é uma obra fascinante. Embora escrito em 1906, foi publicado somente em 1944, depois de sua morte. Sua narrativa é feita por uma das personagens, um padre, que precisa se instalar numa casa muito antiga, onde mora uma família de fidalgos, cujo patriarca foi um político importante e mulherengo.
Boa leitura!

CENA: SALA DA CASA / INTERNA / MANHÃ

O CÔNEGO está sentado à sala da casa, lendo um livro e meditando. LALAU entra tentando não fazer barulho. Ele a vê e toma um susto, mas comedido.

Lalau: Teve medo? disse ela.
Cônego: Como é que a senhora entrou?
Lalau: Entrando; vi o senhor aqui, e vim muito devagar, pensando que não chegasse ao fim da sala, sem que o senhor me ouvisse, mas não ouvi nada, todo embebido no que está escrevendo. O que é?
Cônego: Cousas sérias.
Lalau: Nhãtônia disse que o senhor está aqui fazendo umas notas políticas para pôr num livro.
Cônego: Então se sabia como e que me perguntou?

Lalau encolhe os ombros.

Cônego: Fez mal. Olhe que eu sou padre, posso pregar‑lhe um sermão.
Lalau: O senhor prega sermões? Por que não vem pregar aqui, na quaresma? Eu gosto muito de sermões. No ano passado, ouvi dois, na igreja da Lapa, muito bonitos. Não me lembro do nome do padre. Eu, se fosse padre, havia de pregar também. Só não gosto dos latinórios; não entendo...

O áudio vai ficando baixo ao fim dessa fala dela, gradualmente, e substituído por uma trilha de ponteiros de relógio, com aceleração da s imagens. A expressão do cônego continua impassível, mostrando tédio.

Cônego: Que tem que sejam velhos? Deus é velho, e é a melhor leitura que há.

Lalau olha espantada. 

Cônego (sério): Não deve ficar caçoando dos padres.

Lalau fica séria por um instante.

Lalau: Mas não é do senhor.
Cônego: De mim ou de outro, é a mesma cousa.
Lalau: Ora, mas o outro era tão feio, tão lambuzão. . .
Cônego: Mas padre é padre, qualquer que seja a aparência.
Lalau: Está bom, está bom, não precisa brigar comigo; não falo mais do capelão. Pode continuar o seu trabalho, vou‑me embora.
Cônego: Não é preciso ir embora.
Lalau: Muito obrigada! Quer que fique olhando para as paredes, enquanto o senhor trabalha. . .
Cônego: Mas se eu não estou trabalhando! Olhe, se quer que eu não faça nada, sente‑se um pouco, mas sente‑se de uma vez.

Lalau senta‑se. Dali, olha para fora, e o sol, entrando pela janela, chega em seus pés. Para não estar em completo sossego, começa a brincar com os dedos.

Cônego: E sua mãe?
Lalau (Surpresa): Que tem ela?
Cônego: Dizem que se parece muito com ela. É verdade? Você se lembra da sua mãe?
Lalau: Como poderia esquecê-la?
Cônego: Não quis ofender.
Lalau: não me ofende. Sim, senhor. Lembro-me bem dela. E rezo todas as noites para que Deus lhe dê o céu. Era boa como eu não podia imaginar, e ninguém foi nunca tão amiga minha amiga. Não nego que Nhãtônia me quer muito, e tenho provas disso, mas a mãe era outra cousa. 
Cônego: Sofre muito a falta dela, não é?
Lalau: Sim. A mãe morria por mim, e quase se pode dizer que foi assim mesmo, porque apanhou uma constipação, e fiquei tratando-a de uma febre, e ela ficou com uma tosse que nunca mais a deixou. O doutor negou, disse que a morte foi de outra cousa; Mas eu sempre desconfiei que a doença da mãe começou dali. 
Cônego: Sinto muito.
Lalau: Tão boa que nem quis que ela a visse morrer, para não padecer mais do que padecia. Não pude vê‑la morrer. Só a vi depois de morta. Tão bonita! Tão serena! Parecia viva!

Lalau seca uma lágrima no rosto.

Cônego: Deus que a chamou para si, lá sabe por que é que o fez. Agora tratemos dos vivos. Ela está no céu, a senhora está aqui, ao pé de pessoas que a estimam. . .
Lalau: Oh! eu dava tudo para tê‑la ao pé de mim, na nossa casinha da Cidade Nova! A casa era isto (ela levanta as mãos abertas, diante do rosto, marcando o tamanho de um palmo) ainda me lembro bem, era nada, quase nada, não tinha lá tapetes nem dourados, mas mamãe era tão boa! tão boa! Coitada de mamãe!
Cônego: Olhe o sol!
Lalau: Por quê?
Cônego: O quê?
Lalau: Ela se foi! Ela pode acreditar que eu disse isto, por não estar bem aqui, e eu estou muito bem aqui, muito bem.

Lalau sai rapidamente da sala. O Cônego fica sem entender nada por uns instantes, e volta para suas notas. Lalau retorna à sala.

Lalau: Senhor cônego, quero lhe pedir que não fale nada disso à Nhãntônia. Ela vai pensar que não estou gostando daqui.
Cônego (rindo): Fique tranquila. Esse será um segredo só nosso.
Lalau: Padre não pode rir.
Cônego (tom de censura): Rir?
Lalau: Não se zangue comigo; digo isto porque sou muito medrosa e desconfiada.

Bem rapidamente, Lalau sai da sala, não deixando o Cônego falar o que ele fez menção de dizer. Ele fica olhando para a porta, sem entender nada.

FIM

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