Livro em Cena: "Perto do coração selvagem"

Este mês é a vez de homenagear Clarice Lispector, escritora de muitos fãs no Brasil e no mundo, mesmo muitos anos após sua morte. É aí que entendemos o poder atemporal de uma obra de arte. São capazes de eternizar pessoas. Neste caso é bastante merecido, pois Clarice sempre teve uma habilidade incomum para fazer do íntimo algo que prende a atenção e trás encantamento. 
“Perto do coração selvagem” é o romance de estréia de Clarice Lispector, e foi recebido com imenso carinho pela critica e pelo público, embora a autora tenha como obra mais famosa “a hora da estrela”. Nesta obra, Clarice faz um passeio pela vida de Joana. E nesta cena, Joana está diante da mulher que fez com que seu marido a abandonasse. É inusitado como Joana lida com isso, e o diálogo que mantém com Lídia é surreal. 
Boa leitura!

CENA: SALA DE LÍDIA / INTERIOR / FIM DE TARDE 

A cena começa com as duas conversando. 
Não é possível ouvir o que estão dizendo. 
Lídia está falando, alegre. 
Joana a ouve, sorrindo, tentando ser atenciosa. 
As duas calam por um momento. 
Fica um clima estranho entre elas, que procuram olhar para outras coisas. 

Joana: Bem, creio que acabamos o assunto. 
Lídia (assombrada): Nós não dissemos nada ainda... E precisamos falar... 

Joana sorri. 

Joana: Não sente que nos afastamos do motivo que nos trouxe aqui? Se falássemos nele seria pelo menos agora sem interesse nem ardor... Vamos deixar tudo para outro dia. 
Lídia: É absurdo perdermos essa ocasião... 
Joana: Sei que nada posso esperar de sua parte. 
Lídia: Eu te conheço bem. Sei quanto é firme sua maldade. 
Joana: Ah, sabe? 

As duas se encaram. 
Joana se levanta e vai para a janela. 
Lídia espera um pouco e faz o mesmo. 
As duas estão olhando para fora, concentradas. 

Joana:Não tem importância. É claro que você não pode saber o que é maldade. Então vai ter um fi­lho... Quer Otávio, o pai. É compreensível. Por que não trabalha para sustentar o guri? 
Lídia: Por que diz isso? 
Joana: Certamente você estava esperando de mim grandes bondades, apesar do que disse agora sobre minha maldade. Mas a bondade me dá realmente ânsias de vomitar. Por que não trabalha? Assim não precisaria de Otávio. 
Lídia: Isso não vai nos levar a lugar algum, Joana. Diga logo o que quer de mim? 
Joana: Não estou disposta a lhe ceder exatamen­te tudo. Mas me conte antes seu romance com Otá­vio, me conte como conseguiu que ele voltasse para você. Ou melhor: o que ele pensa de mim. Diga sem medo. Eu o faço muito infeliz? 
Lídia: Não sei, não tocamos no seu nome. 
Joana: Não é possível... Ele não se libertaria tão facilmente. 

Lídia deixa a janela e volta para o sofá. 
Joana a olha, se vira, mas continua de pé. 

Lídia (gritando): Mas ele de certo modo detesta você! 
Joana: Você também sente isso? Sim, sim... Não é ódio somente, apesar de tudo. E se fosse medo também? 
Lídia: Medo? Não compreendo. Medo de quê? 
Joana: Talvez porque eu seja infeliz, medo de se aproximar. Talvez seja isso: medo de ter que sofrer também... 
Lídia: É infeliz? 
Joana (rindo): Mas não se assuste, a infelicidade nada tem a ver com a maldade. Você gostaria de estar casada, mas casada de verdade, com ele? 

Lídia olha-a tentando saber se há sarcasmo na pergunta.

Lídia: Gostaria. 
Joana (surpreendida): Por quê? Nada se ganha com isso, não tá vendo? Tudo o que há no casa­mento você já tem. Aposto como você passou toda a vida querendo casar. 

Lídia tem um movimento de revolta. 

Lídia: Sim. Toda mulher... 
Joana: Isso vem contra mim. Pois eu não pensava em me casar. O mais engraçado é que ainda tenho a certeza de que não casei... Julgava mais ou menos isso: o casamento é o fim, depois de me casar nada mais poderá me acontecer. Imagine: ter sempre uma pessoa ao lado, não conhecer a solidão. Não estar consigo mesma nunca, nunca. 
Lídia: Mas o casamento tem seu lado bom também. Tem a companhia de alguém que se ama... 
Joana: E ser uma mulher casada, quer dizer, uma pessoa com destino traçado. Daí em diante é só esperar pela morte. Eu pensava: nem a liberdade de ser infeliz se conservava porque se arrasta consigo outra pessoa. Há alguém que sempre a observa, que a perscruta, que acompanha todos os seus movimentos. Mas a dois, comendo diariamente o mesmo pão sem sal, assistindo à própria derrota na derrota do ou­tro... Isso sem contar com o peso dos hábitos refletidos nos hábitos do outro, o peso do leito co­mum, da mesa comum, da vida comum, preparando e ameaçando a morte comum. Eu sempre dizia: nunca. 
Lídia: Por que casou? 
Joana: Não sei. Só sei que esse "não sei" não é uma ignorância particular, em relação ao caso, mas o fundo das coisas. Casei certamente porque quis casar. Porque Otávio quis casar comigo. É isso, é isso: descobri: em lugar de pedir para viver comigo sem casamento, sugeriu-me outra coisa. Aliás daria no mesmo. E eu estava tonta, Otávio é bonito, não é? (pausa) Como é que você o quer: com o corpo? 
Lídia (balbuciando): Sim, com o corpo. 
Joana: É amor. 
Lídia: E você? 
Joana: Não tanto. 
Lídia: Mas ele me disse, ao contrário... 

Lídia interrompe. 
Fica olhando para Joana, pensativa. 
Joana percebe, e tenta disfarçar. 

Joana: Sim, sim, mas nada altera. Eu o quero também mais friamente, co­mo a uma criatura, como a um homem. 
Lídia: Isso não é mais do que amor? 
Joana (surpresa): Pode ser. O que im­porta é que já não é amor. (agora falando com desdém) Fique com Otávio. Tenha seu filho, seja feliz e me deixe em paz. 
Lídia (perdendo o controle): Sabe o que está dizendo? 
Joana: Sei, é claro. 
Lídia: Não gosta dele... 
Joana: Gosto. Mas eu nunca sei o que fazer das pessoas ou das coisas de que eu gosto, elas chegam a me pesar, desde pequena. Talvez se eu gostasse realmente com o corpo... Talvez me ligasse mais... Otávio foge de mim porque eu não trago paz a ninguém, dou aos outros sempre a mes­ma taça, faço com que digam: eu estive cego, não era paz o que eu tinha, agora é que a desejo. 
Lídia: Mesmo assim... acho. 
Joana: O quê? 
Lídia: Não sei. 

Lídia fica examinando o rosto de Joana. 

Joana (ficando nervosa): O que é? 
Lídia: Não consigo compreender. 

Joana enrubesce de leve. 

Joana: Também. Nunca penetrei no meu cora­ção. 

Joana caminha até a janela. 
Dessa vez, Lídia fica.

Lídia: Ele me contou aquilo do velhinho... Jo­gou o livro sobre ele, tão velho... Antes eu com­preendi, mas agora não sei como pôde... 
Joana: Mas foi verdade. 

Lídia olha Joana, com os lábios entreabertos. 
Então, balança a cabeça, desnorteada. 

Lídia: Eu não fiz isso por querer, sabe? Não, eu não fiz... Por que ha­veria eu de querer enganá-la? Não, não é isso que eu quero dizer, não é isso... 

Lídia cai num choro livre e forte. 
Joana olha para ela fixamente, impassível. 

Lídia: Eu não me incomodaria de tirar Otávio de outra mulher. Mas não sabia que havia você... Não uma pessoa qualquer como eu, mas alguém tão... tão boa... tão sublime... 

Joana sobressalta-se. 
Ela se aproxima de Lídia, que olha para o chão, se ajoelha, e pega a mão de Lídia. 
As duas se olham, e se abraçam.

3 comentários:

  1. Pegou uma parte bem boa do livro, bem boa mesmo.

    ResponderExcluir
  2. Uau, que intenso!
    Interessante notar as matizes dos sentimentos pelos quais as personagens passam, especialmente a Lídia, que vai da negação à culpa. A leitura exige atenção, o diálogo é profundo e sutil.
    Você conseguiu manter bem o tom. Ficou bem legal, Leonardo.
    Abraços!

    ResponderExcluir