A história de um bravo professor

Era um clássico dia primaveril de outubro. Minha rotina continuava a mesma. Acordava todas as manhãs por volta das seis, tomava um café corrido e passava no corpo a água de um chuveiro com o humor bipolar que ora esquentava, ora esfriava. Saia de casa mais ou menos vinte para as sete. Às sete em ponto estava eu escrevendo a data na lousa e saudando a turma da vez com um entusiasmado bom dia.
Lecionar era minha mola propulsora. Adentrar uma classe cheia de alunos até as tampas nunca foi um problema. Ao contrário de meus colegas que reclamavam da quantidade de alunos, sempre tive a convicção de que quarenta alunos formavam um coletivo muito mais entusiasmante que apenas vinte.
Certa vez, deu-me na telha propor aos meus comandados de guerra uma tarefa inusitada. Abandonaríamos por duas semanas o livro didático. Sem obrigações e prazos para cumprir com o conteúdo programático. Apenas o exercício livre da arte de pensar.
Realizamos colóquios, debates e recitais. Trabalhamos com textos, músicas e gestos. Mas, nem de longe, alguma experiência se aproximou àquela proposta por Matheus (aluno inteligente que sempre se destacou dos demais). O jovem me apareceu portando uma filmadora em plena quinta-feira da primeira metade do trato. Puseram-se todos a redigir o roteiro do que chamamos Projeto Cinematográfico do 2º A.
A experiência desprendida da infelicidade de sermos tolhidos diariamente por uma grade curricular engessada foi um sucesso. Rapidamente meus próprios pupilos encontraram uma forma de relacionar o projeto às demais disciplinas. Professores de todas as cadeiras se viram obrigados a participar. Ao final dos quatorze dias o resultado veio a público. O vídeo foi aclamado por colegas de todo o colégio. A crítica especializada da cantina deu o seu parecer positivo. Fomos indicados ao Prêmio Salva de Palmas, entregue somente em ocasiões especiais quando Dona Eusébia (Diretora interina e Múmia permanente) se mostrava contente com algo ou alguém.
Esta é a história de como conseguimos quebrar os paradigmas da sala de aula. Transpomos seus limites. Padronizamos o projeto, o universalizamos na escola e tornamo-no anual. A ideia foi repetida ao longo dos anos e dizem ter saído um cineasta profissional desta brincadeira.

Tudo poderia ter sido verdade. Mas, eu lecionava a noite na periferia de um dia grandes centros urbanos do Brasil. Vinte por cento dos meus alunos trabalhavam durante o dia para ajudar em casa e estavam cansados a noite, trinta e sete por cento deles não tinha frequência nas aulas e os outros quarenta e três tinham o tráfico de drogas como vizinho de porta.

Esta é a realidade do Brasil. Realidade das salas de aula que "formam" nossos jovens continuamente dia após dia. Parabéns aos professores que acordam todos os dias para enfrentar a difícil missão que é trabalhar para o Sistema Público de Ensino.

Gustavo Dias

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